quarta-feira, 14 de março de 2018

Leitura na Calçada, experiência inusitada e inovadora


1.      Leitura na Calçada, experiência inusitada e inovadora

É preciso fazer ver à criança que o livro é o mais movimentado,
o mais variado, o mais engraçado dos brinquedos.
                                  (Alceu Amoroso Lima)

Com o livro aprendi a brincar com a vida. Por isso, quando as crianças se acercaram de mim na hora crepuscular, eu ofereci a elas o meu brinquedo predileto. E foi assim, como a experiência lírica de um poema e a magia dos contos de fadas, que surgiu o projeto Leitura na Calçada”, principal objeto deste trabalho.

8.1. Um pouco de história

Faço caminhada à tardinha. Subo a mesma rua comprida que todo mundo sobe. Caminho na mesma avenida nova e plana, aberta no meio de um resto de cerrado, e liga a cidade à Rodovia MG 365, conhecida entre os caminhantes como Duas Pistas. Mas vou só, enquanto outros vão aos pares, aos bandos, rindo, falando, gesticulando, apressados. Vou só. Caminho sem pressa, respirando fundo, brincando de esconde-esconde com o sol se pondo atrás das árvores, atrás das nuvens; escutando as vozes da tarde; escutando o bem-te-vi, atento e denunciador na copa das árvores, nos fios de luz: “bem-te-vi, “bem-te-vi, que vi-vi.” Vou só porque tenho um encontro marcado comigo mesma. Não posso me perder.
Nesse embevecimento, não percebo que estou sendo observada pelas crianças. De repente, duas meninas entre três e quatro anos vêm a meu encontro de braços abertos. Abaixo para receber o abraço. Muito falantes, as garotas contam suas histórias, fazem mil perguntas. Escuto pacientemente, respondo com ternura. Agora, uma de um lado, outra do outro, caminhamos juntas de mãos dadas até que as convenço a voltar para não se distanciarem muito de casa. Quando retorno, encontro as pequenas esperando na calçada.
Todos os dias, lá vêm as crianças, trazendo outras crianças para ouvir e contar histórias. Ficando íntimas, começam a pedir brinquedos e guloseimas. Mostro as mãos vazias, os bolsos vazios. Explico que as coisas custam. Mas guardo para elas uma surpresa.
No próximo encontro, a surpreendida sou eu. Cada criança me oferece um presente: uma pedrinha da sua coleção, uma flor, uma bala ganhada no bar, uma manga verde colhida no quintal mais próximo. Um bebê que vem nos braços do irmão tira da boca a chupeta e me oferece: “Qué?” São dois presentes: a chupeta e a primeira palavra. Caminho nessa tarde pensando em algo para retribuir meus companheirinhos. Quero um brinquedo mágico que encante meninos e meninas; que os faça caminhar no fio invisível do destino presos a uma ponta de esperança.
Retorno no dia seguinte com um livro nas mãos. Mostro a capa colorida; faço suspense e sigo caminhando. Na volta, sentados na calçada, temos o primeiro encontro mágico de leitura. As ilustrações fortemente coloridas, a história curta e movimentada atrai a atenção de todos. As peripécias da personagem despertam o riso, gargalhadas. E o clássico pedido: “Lê outra vez!”. O encantamento foi tão grande que não pudemos interromper.
As reuniões para leitura na calçada se repetem dia a dia. As crianças esperam brincando de bola, de rodar pneu, de caminhar sobre pernas de pau. De cima de uma árvore, o primeiro que me avista dá o sinal: “A mulher das historinhas!”. Todos correm a meu encontro de braços abertos para o abraço. Para não interromper a caminhada, deixo o livro com o grupo. Enquanto caminho, ficam “namorando” o objeto mágico, folheando, familiarizando-se com a história através das ilustrações, preparando-se para o grande momento. Escolhem o meu lugar, geralmente entre as duas primeiras que chegam. As menores pedem colo, as outras vão se ajeitando, formando um semicírculo. Começa o jogo de sedução: mostro a capa, abraço o livro, acaricio. Leio o título, o nome do autor. E vamos entrando na leitura. Cada página, o suspense: O que vai acontecer? Cada cabeça, uma imaginação. Entram na história, se misturam com as personagens. Às vezes, interrompem para contar a própria história. Em seguida, pedem para continuar. Depois de ler, voltam a perguntar. Há uma segunda leitura que escutam em silêncio. Trocam ideias a respeito das atitudes das personagens, debatem, entram com suas experiências de vida. Criam, recriam. Todos querem ver o livro, manusear, ler.

8.2.  Cada encontro um desafio

Os livros tinham que ser muitos e variados para que todas as crianças pudessem ter o seu. Abro minha biblioteca para elas. Criamos um sistema de empréstimo de livros do meu acervo pessoal. Além de continuar comprando, começamos a receber doações. Com o tempo outras atividades foram se incorporando à leitura como o desenho, a pintura, o recorte, a colagem, a dramatização e o teatro espontâneo. A brincadeira virou projeto sem perder as características lúdicas e afetivas de leitura na calçada.
No marco do projeto, não se estabelecem critérios de admissão, nem de formação de grupos. Nesse espaço de liberdade, a calçada, o público se encontra em mutação constante e resulta heterogêneo, uma realidade que enriquece as relações. Na calçada, o livro é um brinquedo mágico e se mistura com a bola, a boneca, o pneu, o pião. As crianças maiores cuidam dos bebês e das crianças pequenas que se incorporam sem a companhia de adulto; ajudam a distribuir e cuidar do material. O livro é emprestado sem qualquer tipo de registro. Sai da calçada para entrar nas casas e favorecer a participação também da família. Chega à escola, para onde as crianças levam para ler com os colegas no recreio.

  8. 3.  Metodologia

As propostas de atividades são gratuitas e o material, de uso coletivo, é colocado no centro da roda ao alcance de todos e utilizado ao acaso, dando asas à imaginação, despertando a alegria, estimulando a criatividade, favorecendo a interação, a convivência.
O trabalho desenvolve-se de maneira lúdica e espontânea. Na calçada, o livro é um brinquedo mágico. E ler, contar história, uma brincadeira divertida, que se mistura com as histórias de vida e brincadeiras tradicionais.
Como nas brincadeiras espontâneas, as regras são criadas pelo próprio grupo. Os conflitos são resolvidos por meio de jogos tradicionais, como as fórmulas de escolha: par ou ímpar e outros em caso, por exemplo, de mais de uma criança querer o mesmo livro.
Cada dia a reunião se realiza diante da casa de um dos participantes, previamente escolhido. As crianças vizinhas se reúnem em mutirão e varrem o passeio momentos antes do encontro. Os adultos colaboram.
A duração de cada sessão depende do interesse do grupo. E geralmente se alonga noite adentro. No final das atividades com o livro, as brincadeiras tradicionais completam a jornada. Tudo termina com a tradicional roda de despedida, todos de mãos dadas, unidos por um desejo comum: “Amanhã você vem de novo?”
O programa se desenvolve em vários pontos da cidade. Milhares de pessoas se beneficiam mediante a criança leitora mediadora de leitura que, como tal, convida outros a participar.

8.4. Acervo

Nosso acervo, enriquecido pelo prêmio no concurso “Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura Junto a Crianças e Jovens de Todo o Brasil” Constitui-se, prioritariamente, de livros de literatura infantil e juvenil, mas contempla também os adultos.

8.5. Resultados

O livro na liberdade da rua despertou nas crianças o gosto pela leitura; promoveu entre elas a amizade e a solidariedade, a escolha democrática, a redução dos índices de evasão e repetência escolar, além de introduzir o livro na família e em salas de aula, multiplicando o número de leitores, aproximando gerações. Muitas crianças se alfabetizam naturalmente no Projeto. E se destacam entre os colegas.
Motivados pelo nosso trabalho, muitos professores que, a princípio, não liam para as crianças em sala de aula, alegando falta de tempo, incorporaram a leitura em seus planos, utilizando nossos livros de literatura. Alguns professores criaram o próprio projeto em sala de aula com os alunos.
Na minha vida também as transformações são marcantes. Naquela tarde, quando interrompi a caminhada para ler com as crianças, eu não imaginava que estaria mudando literalmente os rumos da minha caminhada. Não havia a proposta de um projeto. Fui me envolvendo. E tudo aconteceu e continua acontecendo.
Convites para falar da nossa experiência, ministrar palestras e curso de capacitação para professores chegam a todo instante de municípios vizinhos e distantes, de outros estados e países.
Em 1998 criamos a Associação “Amigos do Livro e da Criança”. Por meio dessa instituição, realizamos palestras, cursos e seminários que reúnem escritores, artistas e arte-educadores em torno do tema, com palestras e oficinas para professores, educadores em geral, bibliotecários, pais, psicólogos e promotores de cultura. O seminário contempla também crianças e adolescentes com atividades paralelas de leitura e lúdica com os mesmos profissionais convidados. E encerra sempre em praça pública com todos de mãos dadas, crianças, jovens e adultos, brincando e cantando. O evento, pioneiro na região, atrai participantes de municípios vizinhos e de outros estados. E vem obtendo o reconhecimento nacional e internacional de especialistas e autoridades que consideram a iniciativa inovadora.
Minha produção literária voltou-se para o público infantil e juvenil. Aposentada, retomei os estudos para especializar-me em Educação Infantil. Em seguida, retornei à sala de aula para ministrar Literatura Infantil e Juvenil e Metodologia para o Curso Normal Superior a convite da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC/Martinho Campos.
Brincando e cantando com as crianças na rua comecei a pesquisar a cultura popular tradicional. Mais tarde, fiz curso de Folclore, publiquei os primeiros livros na área e fui admitida como membro efetivo na Comissão Mineira de Folclore, eleita para o Conselho Consultivo (2004-2007 e 2014-2017).
Entre livros e crianças na liberdade da rua, re-conquistei o meu espaço e re-descobri meu lugar no mundo. Hoje, lendo história, contando história, escrevendo histórias, refaço os meus próprios caminhos. E busco retribuir a Sô Augusto e aos Irmãos Grimm a dádiva de amor, seguindo seus passos no resgate e construção de um mundo encantado para as crianças. Mundo onde o bem prevalece sobre o mal; onde a justiça, o amor, a paz e a esperança ainda são possíveis.

8.6. Projeção

A semente lançada espalha-se pelo mundo, germina e cresce em outras calçadas, outros espaços e regiões.
Temos notícias de projetos motivados pela nossa iniciativa pelo Brasil afora e no exterior. Com as diversificações e transformações exigidas para acompanhar o ritmo da vida, para se adaptar ao perfil dos que o abraçam e atender a interesses e necessidades do momento, de cada região ou grupo.
Por sua qualidade e originalidade “Leitura na Calçada” conquista prêmios e ganha destaque em seminários, congressos e revistas especializadas em países da América Latina e da Europa; em jornais, vídeos e programas de rádio e TV.
Nos limites deste trabalho, citamos os principais destaques e premiações.

8.7. Premiações

·        1º lugar no Concurso “Os Melhores Programas de Incentivo à Leitura Junto a Crianças e Jovens de Todo o Brasil” / Biblioteca Nacional e FNLIJ - 1998;
·        Semifinalista do Prêmio Itaú-Unicef - 1999
·        Premiado pela Funarte - 2012
·        Selecionado entre os vencedores para apresentação no Seminário de Literatura Infantil e Juvenil, integrante do Salão do Livro Para Crianças e Jovens, em comemoração aos 20 anos do Concurso - FNLIJ - Rio de Janeiro - 2015.

8.8.  Destaques

·        Apresentado no Congresso Mundial de Educação Infantil da OMEP em Santiago do Chile (2001) e publicado na Revista Novedades Educativas (Argentina e México, 2002) como experiência inovadora em educação infantil na América Latina;
·        Publicada com destaque em números especiais das revistas AMAE (1998) e Pátio Pedagógica (2004) e Mi Biblioteca, número especial (2008), como referência e distribuída pelo Governo a todas as escolas e bibliotecas da nação espanhola;
·        Selecionada entre as 17 melhores experiências socioeducativas da Europa e América Latina para publicação na Revista Internacional Magisterio, número especial (2006) para llevar lo mejor en educación al magistério de America Latina e para estudo no Curso Internacional de Especialização em Lodocriatividade, coordenado pelo pesquisador uruguaio Prof. Dr. Raimundo Dinello e ministrado por uma equipe internacional e multidisciplinar com experiência em lúdica, à qual integro como professora convidada;
·        Selecionado para o vídeo “Curso de Capacitação para Dinamização e Uso da Biblioteca Pública” (2000).  

Conclusão

A experiência aqui relatada comprova a importância e a diversidade de espaços de mediação, bem como o perfil do mediador na formação de crianças e jovens leitores. E aponta para a necessidade de projetos inovadores que aproximem esse público do livro de forma espontânea, lúdica e afetiva e que universalizem, de fato, o acesso à leitura. Esperamos com esse trabalho ampliar e enriquecer as discussões e servir de referência para aqueles que buscam novas formas e metodologias para o trabalho com a leitura e a literatura infantil e juvenil em salas de aula e além dos muros da escola, contribuindo para uma melhor compreensão e aproveitamento dos múltiplos espaços e da arte literária e suas funções na formação de leitores, desenvolvimento da personalidade e das potencialidades da criança e do adolescente.


Referências Bibliográficas
BADEJO, Maria Lúcia. Uma biblioteca no meio da rua. Pátio Revista Pedagógica, Porto Alegre, n. 29, p. 39-43, 2004.
BAMBERGER, Richard. Como incentivar o Hábito de Leitura. 7. ed. São Paulo: Ática, 1975.109 p.
BETELHEIN, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 367 p.
BETELHEIN, Bruno. Uma vida para seus filhos. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 323 p.
CURSO de Capacitação Para Dinamização e Uso da Biblioteca Pública; TIP 7. Direção: Francisco Magaldi Martorano. Produção de Praxis Comunicações. Apresentação: Tônia Carrero, Global Editora, 2000. 1 videocassete (103 minutos), VHS – NTSC.
DINELLO, Raimundo Ângelo. Carta de referência. 1998.
FARIA, Edméia. Lectura em La Vereda. Revista Novedades Educativas, Buenos Aires. México, Año 14. N.134, p. 11, 2002.
MENDES, Rosa Emília de Araújo Mendes. Carta de referência ao projeto LC, 1998.
MINISTÉRIO, Cristina. Calçada e leitura: parceria possível. Revista AMAE, n. 282, p. 19, 1999.
SANTOS. Ângelo Oswaldo Araújo. Carta de recomendação do Projeto LC, 2001.
PENNAC, Daniel. Como um romance. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 167 p.
VIGIL, Daniel Menéndez. Lectura en la vereda. Revista Mi Biblioteca, Espanha, n. 14, p. 94-97, 2008.

Anexos

Como referência ao nosso trabalho, anexamos trechos de artigos e reportagens publicadas em revistas especializadas, cartas de referência e de recomendação de autoridades, fotos e mensagem das crianças que atestam o êxito da nossa experiência.

Anexo 1
Referência de especialistas e autoridades

1.      No interior de Minas Gerais, o projeto Leitura na Calçada aproxima os livros das crianças e adolescentes de maneira espontânea, lúdica e afetiva.
(...) A professora Cornélia de Campos Vasconcelos é uma das que percebe na prática o resultado do trabalho coordenado por Edméia. “Vejo que até as crianças que tinham pavor da leitura agora pedem para ler”, afirma a professora, que trabalha com uma turma de 4ª série na Escola Municipal Antônio da Palmira. O programa mudou a rotina da classe depois que alguns alunos começaram a participar dele e a levar livros para a sala de aula. Muitos colegas interessaram-se pelas histórias e começaram a pedir para lê-las na aula ou levar os livros para casa. A partir desse interesse surgiu o Momento de Leitura, realizado diariamente na sala de Cornélia (...) “Eles começaram a frequentar a biblioteca da escola e a levar livros para casa, além dos que são emprestados pela Edméia”, conta a professora.
 (BADEJO, 2004)

2.      Para a professora e escritora Edméia da Conceição de Faria Oliveira não foi preciso mais do que disposição de caminhar, uma boa dose de ternura, muito amor pela leitura e pelo próximo, alguns livros e a beira de um meio-fio para que ela conseguisse que algumas crianças de Pompéu (MG) fossem ao seu encontro para ouvir histórias, resgatar brincadeiras, socializar conhecimentos.
(...) A leitura, hoje, é mais que um hábito para essas crianças pobres do interior de Minas. É um prazer, uma oportunidade de sonhar, de desenvolver a autoestima, de lidar com a inteligência emocional e, sobretudo, de acreditar em valores como a solidariedade humana. (MINISTÉRIO, 1999)

3.      Leitura na Calçada tem demonstrado que crianças que vivem em ambientes pouco estimuladores da alfabetização podem desenvolver o gosto pela leitura, podem gostar de ler.
(Rosa Emília de Araújo Mendes – Presidente da OMEP/ Minas - 1998)

4.      Semana tras semana llega Edméia con su biblioteca ambulante a las calles de la periferia de la ciudad de Pompéu, en Brasil. Allí esta mujer de las historias, como todos la llaman, reparte abrazos, besos, sonrisas, imaginación y, sobre todo, lecturas entre los niños y niñas que la esperan con impaciencia. Se sientan en su alrededor en la vereda (así denominan a la acera en América del Sur) y Edméia comienza la historia. Se trata de un peculiar programa de animación lectora y un verdadero proyecto de vida a favor de la infancia. (VIGIL, 2008)

5.      O projeto, a experiência “Leitura na Calçada” criado e assumido pela Edméia, tem a poesia, tem o prazer do encontro num diálogo com as pessoas e com os livros. (...) Assim, a realidade e a poesia se encontram na virtude da espontaneidade educativa no seu contexto de vida. Possivelmente, nesse encontro radica a esperança do futuro. (DINELLO, 1998)

6.      Na liberdade da rua, o projeto “Leitura na Calçada” coordenado pela Profa. Edméia Faria, atinge o seu sétimo ano de existência, consolidada pelo mérito dos resultados e pela solidariedade nos propósitos. (...) A Secretaria de Estado da Cultura considera relevante o projeto de Pompéu e o recomenda pela qualidade de suas metas, por sua capacidade de instrumentalizar o menor, carente, de uma visão crítica do mundo que o cerca e de integrá-lo no seu tempo como sujeito. Ângelo Oswaldo de Araújo Santos – Secretário de Estado da Cultura.